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Publicado em 04/12/2021
Rebeca Maria
O Brasil de Carolina em 2021

Carolina Maria de Jesus em 1958 na favela do Canindé, em São Paulo, onde morava
(Foto: Audálio Dantas)
Em 1960, era publicado o livro Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, mulher preta e moradora da favela do Canindé, em São Paulo. O livro reúne textos dos diários de Carolina, entre julho de 1955 e 31 de dezembro de 1959. O cotidiano dessa mulher, que catava papel para vender na reciclagem e sobreviver mais um dia, tendo que manter três filhos, apresenta o cenário de um Brasil não tão distante de 2021.
A fome é a personagem principal da vida de Carolina; é a fome quem dita seus dias e seus dilemas. E a dúvida permanente sobre conseguir alimento para si e seus filhos é sua maior angústia. "Como é horrível ver um filho comer e perguntar: 'Tem mais?’ Esta pergunta 'tem mais' fica oscilando dentro do cérebro de uma mãe que olha as panelas e não tem mais", escreve Carolina em seu livro.
Seus diários são a narrativa de vida de uma população marginalizada, vista pelos olhos de quem vive a fome, e não os de um observador. “É preciso conhecer a fome para descrevê-la", diz Carolina. Quarto de despejo é como Carolina chama a favela onde vive, e todas as favelas da cidade. Os quartos de despejo da cidade. Na década de 1950, essa população tinha ainda menos voz do que hoje, até a descoberta de seus diários e sua publicação. Mas hoje, 2021, muitas mulheres e famílias ainda vivem essa mesma vida nos “quartos de despejo” da cidade: com fome e sem voz.
"O açúcar aumentou. A palavra da moda, agora, é aumentou. Aumentou!"
A leitura do livro traz um retrato do Brasil do século XX. Mas hoje, já no século XXI, após dois anos da pandemia da Covid-19, o país continua em dívida com todas as suas Carolinas. Com uma inflação de 10,25% (no acumulado em 12 meses até setembro, segundo o IPCA – Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), desemprego crescente e um desmonte geral de políticas e programas sociais, o Brasil em 2021 está de volta ao mapa da fome: hoje, estima-se que já são 49,6 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar moderada ou grave, segundo dados da FAO, ONU e OMS.
“ Não sei como havemos de fazer. Se a gente trabalha passa fome, se não trabalha passa fome.”
Sem a possibilidade de comprar alimentos ou, eventualmente, sem mesmo poder comprar o gás para cozinhar, essa população afunda numa situação de calamidade, na qual as pessoas entram em filas para conseguir ossos em açougues, como aconteceu recentemente em Cuiabá – MT.
Em um dos trechos de seu livro, Carolina conta: “Passei no frigorífico para pegar os ossos. No início ele nos dava linguiça. Agora nos dá osso.” Sessenta anos depois, uma grande parcela da população brasileira continua enfrentando os mesmos problemas econômicos e sociais.
Ao mesmo tempo, segundo a revista Forbes, em 2021 o Brasil tem 40 novos bilionários. Enquanto há milhões de pessoas com fome, apenas 40 cidadãos crescem financeiramente, tornando mais evidente do que nunca a estrutura social perversa de um país em que tão poucos – que não chegam a 1% da população total – constroem sua fortuna sobre a miséria de tantos.
“A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso paiz tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. E tudo que está fraco, morre um dia.”
A descrença em governos e na própria política é uma das consequências desse tipo de situação. Com uma população que não tem nem a segurança de conseguir fazer uma refeição por dia pode acreditar em sistemas políticos, ou promessas de melhoria feitas por governantes que não são capazes de proporcionar ao povo nem os seus direitos humanos básicos? A história contada por Carolina pode muito bem estar sendo reescrita por qualquer outra mulher brasileira em 2021, que continua vivendo os mesmos problemas sociais, econômicos e políticos que poderiam já ter sido superados nesses 60 anos.
Em 1958 Carolina escreveu em seu diário: “No dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!” Em novembro de 2021, milhões de brasileiros seguem lutando, assim como ela, contra essa escravatura sem fim.
Nota: os trechos destacados em itálico entre os parágrafos foram retirados do livro Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, 10.ed., São Paulo: Ática, 2014.