MENU


Publicado em 06/12/2021
Paulo Bonasorte
Futebol nordestino quebra preconceito e estigmas
Em julho de 2016, o jornalista Eduardo Bueno declarou, no programa Extraordinários, do canal SporTV, que não respeitava o Sport Recife e que não sabia que existia futebol acima da Bahia. Não foi a primeira vez que o jornalista demonstrou seu preconceito contra os nordestinos. Em junho de 2014, ele já havia ofendido a região nordeste publicamente, com palavras de baixo calão.
Em julho de 2019, o lateral Renê, do Flamengo, foi alvo de ofensas no Twitter. Natural do Piauí, o jogador foi chamado de "Paraíba" por torcedores do próprio time. Os ataques aconteceram uma semana depois que um vídeo do presidente Jair Bolsonaro circulou nas redes sociais se referindo aos governadores nordestinos da mesma forma.
Em maio de 2021, no podcast Mano a Mano, o jogador Hulk disse que já sofreu muito na carreira por ser nordestino, e disse que muitas vezes as pessoas só o chamavam de “Paraíba”, por conta do sotaque.
Em junho de 2021, o radialista Domênico Gatto, da rádio Energia 97FM, utilizou os termos “lixo” e “porcaria” para se referir ao futebol nordestino durante um programa esportivo. Domênico disse que “nenhum clube da região” iria se classificar para a Copa Libertadores.
São muitas histórias. Mas a realidade do futebol na região nordeste está mudando, e com isso, também a visão da grande imprensa sobre o assunto.
O legado do nordeste para o futebol
Foi do nordeste o primeiro campeão brasileiro: em 1959, o Bahia venceu o título nacional derrotando o Santos de Pelé. O Sport, clube tradicional de Pernambuco, ganhou a Copa do Brasil de 2008 e o Campeonato Brasileiro de 1987. O Santa Cruz, também de Pernambuco, foi manchete mundial por colocar uma média de público de 32 mil pessoas no estádio num jogo da quarta divisão do futebol brasileiro.
Se o nordeste fosse um país, a seleção dos jogadores ali nascidos contaria com nomes históricos como Dida, Júnior, Mazinho, Vampeta, Daniel Alves, Bebeto, Edílson, Zagallo e Rivaldo.
Também lá existe grande rivalidade entre os times, e as partidas recebem nomes como Clássico das Multidões e Clássico das Emoções (entre Sport, Náutico e Santa Cruz) em Pernambuco; Ba-Vi (Bahia e Vitória), na Bahia; Clássico-Rei no Ceará, entre Ceará e Fortaleza; e o Clássico das Multidões (CRB e CSA) em Alagoas.
Situação atual dos clubes
O abismo financeiro entre as regiões brasileiras fez com que muitos times do nordeste perdessem espaço no cenário nacional. A região ficou historicamente afastada do futebol brasileiro e das suas organizações de exclusividade, como o Clube dos 13. A atenção da mídia nacional sempre foi voltada aos clubes das regiões sul e sudeste, o que fez com que a própria população nordestina começasse e torcer também por esses clubes do chamado “Eixo”, desvalorizando os clubes regionais.
Mas isso está mudando. O Estado do Ceará tornou-se o centro do futebol nordestino. Fortaleza e Ceará, os dois clubes de maior expressão da região, estão juntos na elite do Campeonato Brasileiro desde 2019.
Os resultados dentro de campo são reflexo do que os clubes vêm realizando fora das quatro linhas. As gestões recentes buscaram equilibrar as finanças e desenvolver projetos sólidos para figurarem entre os clubes de elite do Brasil. Os clubes, nos últimos anos, profissionalizaram vários departamentos internos, ampliaram o número de lojas oficiais, contrataram bons jogadores e não se afundaram em dívidas, para que gradualmente fossem melhorando sua performance e chegasse a resultados inéditos, como a classificação para a Libertadores, conquistada em 2021 pelo Fortaleza.
Fortaleza e Ceará são modelos e mostram o impacto que gestões bem realizadas podem causar. São equipes que não têm o mesmo poder aquisitivo e potencial de faturamento de outros clubes brasileiros, mas conseguiram construir bases sólidas para figurar entre os principais times do país com frequência.
Hoje há 10 clubes nordestinos nas duas principais divisões do futebol brasileiro, o que representa um quarto do total de times, e é um recorde histórico. O futebol nordestino vem mudando de patamar, e um exemplo é a Copa do Nordeste, que vem se superando em patrocínios e audiência, tornando-se um campeonato muito chamativo e competitivo.
Entrevista com Clauber Santana
O jornalista pernambucano Clauber Santana é analista de futebol, participante do podcast “45 Minutos” e do “TimbuCast”, este focado no clube Náutico. Trabalhando e vivendo diariamente a realidade dos clubes da região, Santana traz sua visão sobre o preconceito em relação ao futebol nordestino nesta entrevista exclusiva para o Pauta Acadêmica.
Como o preconceito atrapalha no crescimento do futebol nordestino?
Atrapalha a partir do momento em que as pessoas não conhecem a fundo o futebol nordestino e acreditam em estereótipos que muitas vezes não condizem com a realidade. Isso acaba fazendo com o que empresas e jogadores renomados não conheçam de fato a força que o futebol nordestino tem, o que pode produzir e transformar. O conhecimento surge quando vivem a realidade local. O problema é que muitos evitam conhecer de fato.
- Incomoda o foco da mídia nos clubes do "Eixo”?
Sempre. A atenção dada aos times nordestinos é pequena, quase nula nos grandes programas esportivos nacionais. Por isso, a mídia independente, incluindo os nichados por clubes, cresce a cada dia mais. Hoje, o torcedor não precisa esperar horas para ver 1 ou 2 minutos sobre o seu time. É possível acompanhar horas de debates e informações sobre os clubes do nordeste nos canais de torcidas e em podcasts/canais como Podcast45 e Baião de Dois.
- Você acha que o crescimento do futebol nordestino está “incomodando” o universo do futebol brasileiro?
Incomoda sim, porque os clubes locais podem roubar parte do mercado antes ocupado por equipes do “Eixo”, como Flamengo e Corinthians. Na verdade, não é um roubo, é apenas uma recuperação de torcedores locais. Por isso, o crescimento dos clubes nordestinos incomoda e, sobretudo, atrapalha o planejamento de algumas equipes.
- Na sua opinião, o que clubes como Fortaleza fizeram para competir de igual para igual com os gigantes do sul e sudeste?
Acredito que ainda não dispute de igual para a igual porque há uma diferença gigante no poderio financeiro. Mas o futebol é um esporte em que nem sempre o dinheiro entra em campo e é possível, com um trabalho sério e organizado, diminuir as diferenças. Foi o que o Fortaleza fez e até o Ceará também. Ainda há uma distância fora de campo, mas dentro das quatro linhas, com planejamento e responsabilidade, as equipes conseguem quebrar paradigmas. Mas são trabalhos realizados há anos e que agora estão rendendo frutos.
- Na sua opinião, qual é o maior clube do nordeste? E qual é o maior clássico?
Essa é sempre uma pergunta polêmica. O clássico é mais fácil falar porque, na minha opinião, envolve os dois maiores clubes do Nordeste: Bahia x Sport. E, nesse duelo, embora haja alternância entre as equipes, acredito que hoje o Bahia está à frente do Sport pela reestruturação realizada. No passado, as histórias de ambos são semelhantes em relação aos títulos nacionais.
